RADIOTERAPIA CEREBRAL E O HIPOCAMPO 

Miguel Torres Teixeira Leite, Médico Especialista da SBRT

Radiooncologista do Instituto de Radioterapia São Francisco e Sta. Casa de BH - MG

julho de 2015


Introdução

Este artigo pretende fazer uma breve revisão sobre o hipocampo, sua importância para a memória anterógrada e os efeitos da radioterapia nesta área. Sem qualquer pretensão a originalidade constitui-se em um relato dos resultados descritos por diferentes autores.


Conceito de hipocampo

O hipocampo é uma estrutura  bilateral, localizada nos lobos temporais, pertencente ao sistema límbico, sendo considerado a principal sede da memória.

Foi inicialmente descrito por Giulio Cesare Arantius, anatomista italiano, em 1578. Seu nome deriva de seu formato curvo visto em secções sagitais do cérebro humano (Chera BS et al., 2009) e que se assemelha a um cavalo-marinho (Grego: hippos = cavalo, kampé = curva).

Lesões no hipocampo afetam a memória anterógrada, o que impede a construção de novas memórias, sem afetar as lembranças antigas (memória retrógrada).

A relação entre o hipocampo e  memória foi descrita  em  1957 por William Scoville e por Brenda Milner. Um paciente portador de epilepsia incontrolável foi submetido a lobectomia temporal bilateral. Imediatamente após o procedimento passou a sofrer de severa amnésia anterógrada, sem qualquer outra disfunção cognitiva. 


Radioterapia cerebral total

Os efeitos iatrogênicos da radioterapia cerebral total afetam as funções neurocognitivas e reduzem a qualidade de vida dos pacientes.

Só recentemente tem sido dada especial atenção aos efeitos colaterais desta prática, com o emprego de questionários de qualidade de vida e avaliações neurocognitivas.

Estudos demonstram que a grande maioria dos pacientes irradiados (90,5%) apresentam algum  declinio das funções em relação ao início do tratamento e sugerem que a progressão da doença tem mais  impacto sobre as funções cognitivas em pacientes sem tratamento, do que em pacientes submetidos a radioterapia cerebral total.

Dados do estudo fase III do RTOG 0214 que randomizou pacientes entre observação e profilaxia do SNC para não pequenas células sugerem também impacto negativo nos testes de cognição. Os pacientes apresentam especialmente declínio da memória anterógrada e perda da coordenação de movimentos finos.

Os mecanismos de dano cerebral provocados pela radioterapia são complexos e multifatoriais. Classicamente são descritos como devidos a lesão na microvasculatura e a diminuição das células gliais.  Contudo evidências tem sugerido que alterações cognitivas tambem se devam a lesões específicas em  células-tronco, situadas em zonas neurogênicas.


As NSCs

As células-tronco neurais com processo mitótico ativo (NSCs) estão localizadas em diferentes partes do cérebro e nas camadas sub granulares do hipocampo.  Elas tem a capacidade de auto-regeneração e de formar novas células diferenciadas.

Estudos experimentais em ratos mostram que doses únicas ou múltiplas de 5 a 30Gy, em todo o cérebro induzem apoptose destas células. Testes imunohistoquímicos confirmam a  redução das NSCs na zona subgranular após exposição a radioterapia. Esse declínio está associado à diminuição das funções cognitivas em animais de experimentação, seja em  frações únicas ou múltiplas.

Evidencias pré-clinicas sugerem que doses tão baixas como  2 Gy resultam em apoptose de 50% das células-tronco neurogênicas e sugerem haver  “no-shoulder dose-response”, ou seja, quaisquer doses afetam as NSCs. O QUANTEC informa que a relação α/β  é de 2,9  para o cérebro normal. Não há  consenso quanto ao valor desta relação para o hipocampo, variando de  3,0 a  a 10,0 (mesmo valor empregado para as células tronco).

Foi demonstrado que o transplante de células (hNSCs) intra-hipocampal pode melhorar a cognição em ratos atímicos submetidos  a radioterapia cerebral. A suceptibilidade do hipocampo em ratos jovens é maior do que nesses animais  adultos (Acharya MM et al., 2015).

Na tentativa de se proteger as células-tronco o RTOG 0614 utilizou  memantina, um protetor neural usado na demência de Alzheimer, em um estudo duplo cego controlado fase III. Os pacientes tratados com memantina apresentaram melhor função cognitiva ao longo do tempo, com redução da taxa de declínio da memória (Suh JH, 2014).

Utilizando-se técnicas de IMRT é possível criar um plano terapêutico que minimize a dose no hipocampo. Inúmeros estudos cognitivos foram desenhados para avaliar os beneficios dessa  proteção. Com a utilização de técnicas modernas pode-se reduzir a dose no hipocampo em 80%, com adequada  cobertura e homogeneidade da dose no restante do cérebro.

Essa estratégia se alicerça no fato de serem muito raras as lesões metastastáticas no sistema límbico.   O hipocampo  é sede de cerca de 0,97% das metástases. Conclui-se, portanto, que sua proteção não aumentará significativamente o risco de recorrência nesta área.

O estudo RTOG 0933, um estudo fase II, tratou 113 pacientes com metástases cerebrais ,com dose de 10 frações de 3 Gy, em todo o cérebro. Houve proteção do hipocampo. Foram aplicados testes de qualidade de vida no início do tratamento e com 2, 4, e 6 meses após a terapia; controles históricos foram utilizados para comparação. Tradicionalmente os testes de qualidade demonstram um declinio de 30% das funções neurocognitivas. A sobrevida mediana foi de 6,8 meses. O estudo mostrou diminuição destas funções em 7,0%(95% CI, -4.7% to 18.7%), inferior portanto aos controles históricos. (p < 0,001). A dose no hipocampo, D100% ≤ 9Gy; dose máxima dose de ≤ 16Gy (Gondi V et al., 2013).

Entre as críticas destaca-se que se tratava de um grupo heterogêneo de pacientes, com ausência de avaliação da relação custo/efetividade, A  limitada sobrevida também dificulta a real avaliação dessa técnica. Não foram considerados fatores como o número e tamanho das lesões metastáticas e o status da doença extracarnial.


É difícil a vizualização do hipocampo através dos cortes tomográficos convencionais devendo ser identificado com mais acerto com o emprego dos cortes axiais de uma RNM com contraste, em sequencia T1 com cortes de 1,5 mm.

A delineação recomendada pelo Radiation Therapy Oncology Groupem seu atlas online é considerada padrão (Gondi V. et al., RTOG 0933). No entanto, não contorna todo o hipocampo, focando especialmente na zona subgranular.  Um sugestão de contorno mais abrangente da região do hipocampo foi proposto por Chera (Chera BS et al., 2009).  

O delineamento é feito, em linhas gerais,  localizando o corno frontal do ventriculo lateral, ao nível do quiasma óptico, contornando a substância cinzenta adjacente até o nível da hipófise; sua porção mais cranial se encontra ao nível do esplênio do corpo caloso. Na figura 1 o resultado da delimitação do hiopocampo em reconstrução lateral com 0,5 cm de expansão (Gondi V. et al., RTOG 0933)

Delineação do hipocampo


Conclusão

A proteção do hipocampo só poderá ser definitivamente incorporada na prática clinica diária quando estudos prospectivos randomizados confirmarem sua utilidade

Estaria especialmente indicada em portadores de metastases cerebrais com uma expectativa de vida superior a 6 mêses, KPS acima de 70. Deve tambem ser considerada para pacientes portadores de tumores de pequenas células de pulmão que se submeterão a profilaxia de SNC. Excluiem-se naturalmente pacientes com lesões próximas ao hipocampo (Kazda T et al., 2014).

No entanto quanto IMRT cerebral for utliizado por outra razão clínica deve-se considerar a proteção do hipocampo(Truc G et al., 2013).

Van Kestern, 2012 descreve uma técnica prática de se minimizar a dose no hipocampo através do emprego de campos laterais protegendo-se a área hippocampal com colimadores de multiplas lâminas.


Referências

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Kazda T; Jancalek R; Pospisil P. et al.. Why and how to spare the hippocampus during brain radiotherapy: the developing role of hippocampal avoidance in cranial radiotherapy. Radiat Oncol. 2014; 9: 139.

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Truc G; Martin É; Mirjolet Cet al.. The role of whole brain radiotherapy with hippocampal-sparing . Sparing hippocampi during whole brain radiation therapy becomes possible with volumetric modulated arc therapy (VMA) or with helical tomotherapy. Cancer Radiother. 2013; 17(5-6):419-23.

van Kesteren Z; Belderbos J; van Herk M; Olszewska A; Lamers E; De Ruysscher D, Damen E; van Vliet-Vroegindeweij C. A.. Practical technique to avoid the hippocampus in prophylactic cranial irradiation for lung cancer. Radiother Oncol 102:225-3227, 2012.